FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério
BENVINDA – Uma História de Emigração
4º. Episódio
– Tiveram pena de nós. A gente não falava a língua deles nem eles a nossa, mas a gente entendeu-se, ainda hoje estou para saber como. Trouxeram-nos pão e queijo e água com picos, lembro-me como se fosse hoje e já lá vão tantos anos. A senhora que nos trouxe o pão perguntou-me se eu tinha filhos pequenos, fez assim com a mão à altura deles e a outra mão no peito, do lado coração. Ora aí está, é mesmo com o coração que a gente se entende, é. Há um par de anos voltei a Hendaia a perguntar por ela, mas já não morava ali e não sabiam para onde tinha ido. Tive pena, mas a vida é assim, a gente anda de um lado para o outro neste mundo à procura de lugar melhor e no fim vamos todos parar ao mesmo sítio.
Rolaram muitas horas por estradas de França, a camioneta não era má de todo, pelo caminho parou para entrar mais um pequeno grupo com maletas. Eram bascos e procuravam melhor vida, que na terra deles também havia desemprego e perseguições. Os “Transports Gaudêncio” tinham um bem montado esquema para transportar os fugitivos da fome e da repressão que viam na França o El Dorado onde dessem a volta às atormentadas vidas. Fazia-se pagar bem, o senhor Gaudêncio que dava nome à firma, os passadores conheciam-no e entre eles distribuíam proveitos vindos da desgraça de quem fugia. Os gendarmes conheciam o carro, fechavam os olhos, abriam o bolso, deixavam seguir, sem muitas perguntas. Era já noite fechada quando a grande mancha de luz a espraiar-se no chão da escuridão os admirou e intrigou. O motorista disse, é Paris, meteu-se por um labirinto de ruas mal iluminadas, depois seguiu por um caminho de terra molhada pela chuvinha daquela noite. Mal divisavam as ruas através dos vidros da camioneta, embaciados pelos vapores dos corpos suados de tanta aventura, mas pareceu-lhes ver casinhotos onde decerto não moraria gente. Talvez abandonados, pensaram, mas a pouco e pouco foram vendo pessoas que entravam e saíam pelas portas das casas e lá de dentro deixavam-se ver por instantes luzes frouxas, inseguras. Benvinda sentiu o estômago apertado e não era de fome, que terra é esta, disse em voz baixa para o seu homem, cala-te mulher, que sei eu, hão-de dizer-nos onde estamos, para onde vamos, que Deus nos acuda, gemeu Benvinda. O carro parou, o homem disse, chegámos, podem sair e, sem dar tempo às perguntas presas nas gargantas dos passageiros, procurem por aí casas que estejam vazias e amanhã logo se verá. Mas, senhor… O carro fazia já inversão de marcha, roncou, acelerou, despareceu no escuro para nunca mais ser visto.